“Ele fixaria em Deus aquele olhar de esmeralda diluída, uma
leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece.
Às vezes,quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende mas sem a
instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a
memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a
servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo.
Mas espera, já estou me precipitando, eu pensava naquela fábula da
infância: é que Deus Nosso Senhor pediu água ao cachorro que lavou
lindamente o copo e com sorrisos e mesuras foi levá-lo ao Senhor. Pedido
igual foi feito ao gato e o que fez o gato? O fingido escolheu um copo
todo rachado, fez pipi dentro e dando gargalhadas entregou o copo
nojento na mão divina.
Acreditei na fábula, na infância a gente só acredita. Mais tarde,
conhecendo melhor o gato, descobri que ele jamais teria esse
comportamento, questão de feitio. De caráter. Ele ouviria a ordem e
continuaria deitado na almofada, olhando. Quando se cansasse de olhar,
recolheria as patas como o chinês antigo recolhia as mãos nas mangas do
quimono. E mergulharia no sono sem sonhos, gato sonha menos do que
cachorro que até dormindo se parece com o homem. Outro ponto discutível:
dando gargalhadas? Mas gato não dá gargalhada, só cachorro. Meus
cachorros riam demais abanando o rabo, que é o jeito natural que eles
têm de manifestar alegria, chegavam mesmo a rolar de rir, a boca
arreganhada até o último dente. O gato apenas sorri no ligeiro movimento
de baixar as orelhas e apertar um pouco os olhos, como se os ferisse a
luz. Esse é o sorriso do gato – ô bicho sutil! indecifrável.
Inatingível.
Nem pior nem melhor do que o cachorro, mas diferente. Fingido? Não, ele
nem se dá ao trabalho de fingir. Preguiçoso, isso sim. Caviloso. Essa
palavra saiu da moda mas deveria ser reconduzida, não existe melhor
definição para a alma do felino. E de certas pessoas que falam pouco e
olham. Olham. Cavilosidade sugere esconderijo, cave – aquele recôncavo
onde o vinho envelhece.
Na cave o gato se esconde, ele sabe do perigo. Mas o cachorro se expõe, inocente.
Foi na minha juventude que conheci o gato bem de perto. Me preparava
para os vestibulares da Academia do Largo de São Francisco, era noite. E
eu lia Iracema sem vontade, lia em voz alta, aos brados, para espantar o
sono. Então ouvi um ruído brusco de coisa algodoada entrando pela
janela e parando atrás da minha cadeira. Senti o olhar da coisa se
fixando em mim. Fui me voltando devagar, afetando aquela calma que
estava longe de sentir: um gato malhado, espetado nas quatro patas, me
encarava, perplexo. Eu também perplexa. Fomos nos recuperando do susto,
eu menos tensa do que ele. Meu apartamento era no primeiro andar de um
prédio cercado de casario e essa janela da sala dava para o telhado de
uma casa velhíssima, por onde transitavam os gatos do bairro.
Por onde andam hoje os gatos que não encontro mais nenhum. Naquele tempo
havia gato à beça nos muros, nos telhados. “É que a vida apertou e gato
dá um bom cozido”, explicou o jornaleiro. A fome aumentou e o telhado
diminuiu, onde agora os telhados nos quais eles ficavam tomando sol?
Caçando passarinho. Amando. Os ratos todos em plena circulação,
fortalecidos. E os gatos, onde estão os gatos? Pois aquele era um gato
de telhado, as manchas amarelas e pretas num fundo branco. E os olhos.
Por alguma razão obscura, escolheu minha casa: estendi a mão afeita a
acariciar cabeça de cachorro. Mas cabeça de gato não é cabeça de
cachorro – primeira lição que ele deu ao recuar com uma soberba que me
confundiu. A conquista do gato é difícil, embrulhada, não tem isso de
amor repentino: mais um movimento de aproximação e ele fugiria ventando.
Fui buscar o pires de leite, deixei-o ao alcance do visitante da noite e
continuei a ler o romance da virgem dos lábios de mel, mas em voz
baixa, intuí que ele preferia o silêncio. Ele ou ela? Sexo de gato não é
nítido como sexo de cachorro, outra diferença importante. Leva algum
tempo para a descoberta do sexo, da unha e da idade.
Gato ou gata, vai se chamar Iracema, resolvi. E deixei meu hóspede, a casa é sua.
Então ouvi o ruído delicado, ele bebia leite, mas não como os cachorros
bebem, sofregamente, espirrando em redor. O gato é discreto. Há que
amá-lo discretamente, pensei e fiquei sorrindo. Tenho um gato.
“Tudo passa sobre a terra!” – estava escrito no final do romance que
achei triste. Olhei para a outra Iracema que dormia no meio do tapete.
Também você vai passar? Tu quoque, Iracema?! Não sabia ainda que
permaneceria infinita na minha finitude.”
(Lygia Fagundes Telles – texto extraído do livro A Disciplina do Amor)