Li no jornal a notícia sobre uma menina, 11 anos de idade, morta a pauladas em Maracanaú. Tinha nome de gente, mas a chamavam de “Preá”. Por coincidência, um dos “trocentos” apelidos de rua que ganhei no tempo de eu menino. Talvez por causa das orelhas de abano ou porque fui um menino miúdo, ligeiro.
Pois bem, a vidinha invisível da mirrada Gerlândia Santos Medeiros valia quase nada pra cidade. Vale uma biografia. Daquelas que nenhum homem público – prefeito, governador, vereador, deputado, senador, presidente da República – poderia deixar de ler, reler e ruminar.
Poderia ser mais. Uma narrativa, conto de fadas às avessas para crianças, pais e professores. Onde, no final, o dragão destroça o pai, a mãe, dois irmãos e a mocinha. Mais ou menos assim: “Branca de Neves morta a pauladas”. Ou então: “Rapunzel, dependente de crack, foi executada”.
Ou talvez: Gerlândia Santos Medeiros, também conhecida por Chapeuzinho Vermelho, “foi vista com vida pela última vez, por volta das 22 horas da terça-feira, quando passou de bicicleta nas proximidades das casas de parentes”.
No capítulo seguinte, intitulado “Viciada aos 11”, a avó paterna de Preá, a aposentada Maria Hilda Medeiros, contou que a netinha era praticamente moradora de rua. “Ela me disse que começou a fumar ‘pedra’ quando tinha nove anos”.
Pois foi. Preá nem sempre dormia em casa. Perambulava sozinha e só saía com alguém, um lobo talvez, quando ia fumar crack. Em 2010, Paulo Sérgio dos Santos Medeiros, pai de “Chapeuzinho Vermelho”, foi assassinado por traficantes que lhe atazanavam dívidas.
Nos anos seguintes, 2011 e 2012, dois irmãos de Chapeuzinho também seriam executados. A mãe? Também se foi. A menina, por último, só tinha a vovozinha que mal sabia dela.
Essa história, real e absurda, é da semana retrasada. Queria que fosse inventada. A notícia de Gerlândia não para de rodar nos meus olhos.
Gerlândia, Preá ou Chapeuzinho Vermelho do Maracanaú, existia há apenas 11 anos quando lhe tiraram a infância. Tempo de quase dois governadores e dois prefeitos. Fizeram o quê pelos dias da menina, do pai dela, da mãe e dos dois irmãos? E nós daqui, da Aldeota, também necas.
Um conto de crueldade que no fim, mais uma vez, os traficantes ficam por aí e o bairro nunca é devolvido para os aldeões. E eles voltarão a roubar miolos de histórias.
... Era uma vez uma menina invisível que só souberam de sua existência quando ela morreu a vida dela mesma.
Tinha tudo para ser uma princesa, gostava de bonecas, ganhar chocolate, entrar na internet, visitar a avó e levar comidinhas pra ela a pedido da mãe. Mas, um dia, em um de seus caminhos pelo Maracanaú, um lobo muito mal, muito mal lhe atalhou...
Este foi o texto que quis vir. Até tentei outros, mas só veio este. Miúda biografia da menina que nunca deram importância.
Até outro domingo.
DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO, demitri@opovo.com.br